quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

A curva do caminho

Uns dizem que a infância é a melhor fase da vida. "O menino é o pai do homem", e dele se arvora com direitos adquiridos. Direitos inerentes à função de pai. Se o menino é pai do homem, talvez fosse mais fácil criar uma idéia de Deus. ( Mas isso deve ser um capítulo à parte, como aquele conto de uma antologia qualquer que deixamos pra ler por último, porque o início estava desprovido daquelas setas fatais que já te atingem de primeira ao primeiro passar de olhos ).
Cruzando a curva da terceira década,ao olharmos pra trás, onde percebemos que o pai do homem nos acena alguns metros mais distante, sussurro onde o vento é mais capaz de transportar meus sons: pai, porque me abandonaste? E eu mesmo respondo, dois em um:perdoa-os, eles não sabem o que fazem. Perdoa a ti mesmo, habitante da curva do caminho. Perdoa este pai que lá no início, tábula rasa, não sabia da curva. Mais difícil, talvez, seja perdoar aqueles que disso sabiam e que te forjaram uma paternidade que depois te mostraria ser tão solitária.
Não é para ser hermético, então esmiucemos ( alguns verbos no português ficam realmente freaks em sua conjugação). Para quem teve uma educação católica, em nome da obrigação que fosse, a noção de pecado faz do pai-menino uma espécie de ferida-aberta-para-sempre. E logo naquela fase tenra, idílica, a fase de forjar a paternidade. Logo ali a ferida se abre, em nome de algumas leis atribuídas ao divino e que foram criadas séculos antes que o teu átomo primevo existisse. Semanas e semanas de martírio antes da primeira confissão - de repente, aquilo que o corpo fazia instintivamente, tinha um nome: pecado. O pai do homem, o pai-menino amadurece de sopetão, acreditando, sem escape, de que eles, Os Outros, sabem o que fazem.
Pai-menino, tábula-rasa, descobriu lá atrás que o pecado é o pai, tão velho, da culpa. Observo meu pai me acenando, lá atrás: quero ensinar a essa criança que tudo é bem mais relativo do que parece. Quero ensinar ao meu pai-menino que eles, Os Outros, nem sempre sabem o que fazem. Que aqueles escrafunchos na ferida recém-aberta devem ser responsabilidade daquele que empunha a agulha. De que a palavra "culpa" não deve constar tão cedo no seu dicionário. Que outras palavras que eu sei agora ( que ele saberá depois), aqui, na curva do caminho, das quais lanço mão, podem ter um significado muito mais limpo, muito mais livre.
Meu pai-menino não é um menor abandonado - faço dele um símbolo de alguma resistência ingênua, ainda utópica, que teima, depois de tantos muros ruírem, em existir. A operação de salvamento do pai-menino urge ser feita aqui, agora, já, nesta curva do caminho.

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Anne.

Sabe o que eu senti lendo? Que tua menina-mãe é tão presente e bacana em ti quanto a delicadeza do comentário que tu fez pra mim ali embaixo.

Um comentário tão delicado que me fez entender o que querias, o que não andamos mais falando e me deu confiança de que vamos um dia duplar num roteiro.

Portanto o teu texto bacana que acabei de ler tem mesmo um significado muito mais limpo e livre em todas as curvas do teu caminho.

Thanx for the kindness.De coração.

Enio

Anônimo disse...

"O menino é o pai do homem"...
caramba, isso me lembra tanta coisa aprendida dentro da modorra...

mas muita.

anyway, bom te ter aqui, bem desencantada e encantando o mundo com as tuas palavras!
sempre.


mn