segunda-feira, 14 de julho de 2008

Uso-fruto temático

Hoje eu voltava do super com quatro sacolas. No cordão da minha calçada, estava sentado um menino. Ele vive "por aí": dorme às vezes na rua, ou em algum abrigo. Pede comida, zanza pela cidade. Tem uns olhos imensos e, acredite, ingênuos. Ele é tão bonito: tem aqueles cílios grossos que emolduram os olhos, algo meio cigano, meio catalão, e a íris não se diferencia da pupila, é tudo uma morna escuridão. Como eu presto atenção nesses detalhes? Respondo com uma frase de Jude Law em Closer: "because I'm a lunatic".
Sei, isso parece mais um daqueles textos melodramáticos, autocomplacentes, de quem se apieda e nada faz. Sim, eu me apiedo e nada faço, ou dar um prato de comida, uma banana, uma garrafinha de refri e dois reais é fazer alguma coisa? Fiquei com vergonha de mim. Fiquei com vergonha de morar num país assim, numa sociedade assim, fiquei com vergonha de gostar mais desse menino que já encontrei várias vezes do que do Caixa Baixa, outro menino que "vive por aí" e que já tem planos concretos de ser bandido quando crescer. Tá no olho. Qual dos dois é mais ingênuo? Quando eu perguntei pro Caixa Baixa o nome dele, ele se requebrou,lançou os dois indicadores estilo hip-hop-bandidagem, e disse, meu nome é Caixa Baixa, Zé Pequeno, Mané Galinha, parafraseando Cidade de Deus. Achei tão engraçado. Depois achei absurdo achar engraçado. Depois achei engraçado de novo. Daí misturou cinema, fantasia, personagem, tudo se imiscuindo na realidade drummondiana "eta vida besta, meu deus".
Depois, claro, entrei para dentro do meu mundo interior e seus pequenos-grandes problemas. As I said, I'm a lunatic.
Mas e então, penso, e pra jantar, o que o moleque-de-rua-mas-do-bem vai ter? Vou ficar,será, pensando nele? E todas as moedas que eu já dei, e que não aliviam essa culpa intrínseca? Não posso ficar pensando. E o sucedâneo de paz que se conquista, por vezes, à duríssimas penas, jogo pelo ralo assim, por causa de uns olhos emoldurados de cigano?
Tudo é mesmo uma grande encenação: eles são personagens, e, como o Caixa Baixa, personagens de personagens, quando a vida vira metalinguagem. Servem de escadas, coadjuvantes exemplares, para outros brilharem: são temas de campanha, são temas de novela, de contos, de manchetes de jornais e, claro, você já percebeu, estava mais que previsível: são temas de posts de uma escritora (?) sofrendo de sério bloqueio criativo nos últimos tempos.
Eu o aliviei com um prato de comida, uns trocados, uma banana, um refri, em troca, ele me deu um post. E é assim que a vida é.

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