Creio que foi Foucauld ( cito de segunda mão, não consegui ainda passar das primeiras páginas) que falou a respeito de "acreditar no discurso". Isso me leva à idéia de aceitação do pacto ficcional. Aquela coisa de comprarmos a idéia do que lemos, compactuar com o autor, aceitar o que se lê como real.
Mesmo que se saiba que é ficção, que não é real ( e mesmo o relato de experiências verídicas, quando escritas, são sempre uma representação), compactuamos. Sentimos, sofremos, rimos, especialmente com aqueles escritores bruxos ( do Cosme Velho ou não). As personagens se tornam quase que pessoas reais e palpáveis.
Mas falo de literatura. E ponto.
Nova linha, parágrafo: a vida não é literatura, aliás, Pessoa disse, o sol doura sem ela. Eu não vivo sem, mas não espero que outros sejam como eu. Gostaria até, mas não espero mais. Mas: a vida é isso aí, do cotidiano, de abrir os olhos, sair pra rua, coexistir - pelo menos em teoria.
Então chego onde eu queria realmente chegar e não conseguiria sem uma básica introdução: é possível aceitar o pacto ficcional, acreditar no discurso da vida chão-chão?
Antes de ser possível ou não, deve-se fazer isso? É assim mesmo que tem que ser?
Devo estar sendo naive ( french words em tua homenagem, Nisemblat), mas, eu ainda não sei jogar o jogo. Esse grande teatrão que virou a vida, desde o sorriso falso, a aquiescência forçada, as amabilidades fúteis ( até então, digamos, estaríamos no terreno "soft", talvez) ao engolir sapos que ficam trancados na garganta.
Porque o bizarro, o irreal, o absurdo, o insuportável, tudo vai virando discurso que se aceita, pacto ficcional que saiu da literatura pra vida-vida mesmo. Aquela de ir trabalhar, pegar ônibus, atravessar avenidas, frequentar o comércio. Digo: não é possível que as pessoas não percebam que tudo é, cada vez mais, uma representação e a gente é, na maioria, aqueles extras que passam ao longe na cena e que nunca levam o nome nos créditos. Que tudo é uma grande manipulação. Cada um escuta, acredito, o eco da verdade em uma altura diferente. Eu, às vezes, quase me ensurdeço - mas fico pensando se eu mesma não estou fabricando esse efeito sonoro pra me candidatar ao Oscar desse categoria imaginária pra esse filme extenso e incompreensível do qual eu faço parte. Da qual a comida, a cor em voga, a marca, a bebida mais nova, o arremedo de moda que respinga nos balaios e liquidações das lojas de departamentos, fazem parte.
Tudo vira camada sobre camada de algo genuíno, primevo, que vai desbotando, vai esmaecendo.
É talvez, uma tentativa de buscar o meu primitivo. Bonito dizer que a arte, a literatura, salva. Salva porque ilude. E ilusão é proteção. A arte imita a vida, lembra? Mas quando a vida começa a imitar a arte, e o surrealismo, que devia estar dentro da moldura daliniana, por exemplo, começa a invadir e transformar a vida-vida nessa representação esquizofrênica, nesse frenesi de mentiras e discursos que de tão falsos são críveis, eu quero que a arte seja mais arte e menos vida.
A vida, esse negócio genuíno e primevo.
E escrever, esse é o meu genuíno e primevo. Mesmo que seja um tatear na neblina, ainda é o espaço em que o pacto ficcional está em seu lugar à parte: no seu verdadeiro lugar.